sexta-feira, novembro 24, 2006

Uma lição literária sobre o Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira

Foi pregado este sermão três dias antes de partir para Lisboa, no seu período de apogeu, como político e como orador. É uma peça oratória de primeira classe, quer pela fina ironia, quer pela riqueza e sugestão das alegorias que o seu extraordinário poder de observação lhe permitiu criar.

Partindo do conceito predicável «Vós sois o sal da terra», faz o Exórdio, que termina com a Invocação a Maria.

Depois, entra na Exposição ou Informação, onde se anuncia a sua assinalada ironia: «e desta maneira satisfaremos as obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos», diz, dirigindo-se, já, aos peixes. Ao fazer referência às virtudes destes, começa a crítica irónica aos homens convertidos «não em peixes, mas em feras», os homens, que, diz ele em tom de troça, «tinham a razão sem o uso», enquanto os peixes tinham o «uso sem a razão». De todos os animais, os peixes são os únicos que não aceitam a companhia dos homens; e, oportunamente, volta a surgir a crítica irónica: «Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus nos livre!» Por isso, quando Deus destruiu o mundo pelo dilúvio, os peixes não só não desapareceram como até se multiplicaram.

Começa, entretanto, a Confirmação, recorrendo a uma argumentação cerrada.

Numa apóstrofe aos «moradores do Maranhão», Vieira concretiza a intenção do sermão, mas rapidamente retoma a alegoria. E começa pela rémora, peixe que compara com a língua de Santo António. Assim como a rémora, «pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme», assim foi a «virtude e força da língua de António» que teve mão nos soberbos, nos vingativos, nos cobiçosos, nos sensuais, o que sugere alegoricamente por meio de naus que a língua do Santo prendeu.

Vem, depois, o torpedo, um peixe que tem o poder de electrizar. Que falta faz ele nos pescadores da terra para lhes fazer tremer o braço e arrepiar caminho! A terceira espécie de peixes que serve aos seus intentos de crítica é a dos quatro-olhos. Comenta: quanto mais necessários seriam nos homens, que a esses peixes, os dois pares de olhos com que foram dotados!

E termina o elogio dos peixes, realçando a sua importância na prática do jejum e o seu mais fácil acesso aos pobres. Naquele tempo, claro!

A Confirmação continua com a censura à prepotência dos grandes que, como os peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos os quais «engolem» e «devoram». Objectiva, concretamente, esta crítica, comparando os pequenos com o pão, que é alimento consumido diariamente, enquanto outros alimentos são revezados no seu gasto. O alvo é a crítica aos colonos que, no Brasil, são grandes, mas no Tejo «acham outros maiores que os comam, também, a eles». Volta a objectivar a crítica, referindo o xareo que corre atrás do bagre «como o cão após a lebre e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado».

Outro argumento vem reforçar este convite ao respeito mútuo - a evocação do dilúvio em que os animais «somente dois de cada espécie» se respeitaram uns aos outros para a conservação da espécie. E conclui a sua crítica, dizendo: «Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também, ou fazei a virtude sem necessidade e será maior a virtude».

Vai, depois, criticar a vaidade dos homens, mesmo naquelas paragens. O peixe não resiste à isca. Aqueles morrem por uma medalha ou distinção. E, se, no Maranhão, «ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos», há os chupistas, os exploradores que sugam o sangue dos nativos, vendendo-lhes gato por lebre. Os panos que em Portugal não passavam, cobiçam-nos eles, esfaimados «e ali ficam esgasgados e presos, com dívidas de um para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida: todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal».

Depois desta visão de conjunto, vai particularizar a sua crítica. Começa por se concentrar nos roncadores, a imagem dos soberbos, e é S. Pedro o símile sugestivo que ele apresenta. «Tinha roncado e barbateado Pedro que se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário». E falhou no Horto das Oliveiras, onde se deixou adormecer, e falhou no pretório de Pilatos, onde, por três vezes, negou que conhecia Cristo.

O exemplo do pequeno pastor David que venceu o gigante Golias vem dar força ao argumento «os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo». Não foi o que aconteceu, também, com Pilatos?

A crítica volta-se, em seguida, para os parasitas, objectivados nos pegadores que aprenderam «este modo de vida, mais astuto que generoso ... depois que os nossos portugueses o (mar) navegaram, porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores». Os peixes pegadores, sobre os costados dos grandes, vivem descansados, mas, lançando o anzol ao tubarão, com ele morrem todos os pegadores. E é a pessoa de Herodes, qual tubarão, que vem concretizar, agora, o seu pensamento crítico, pois, morto o perseguidor do Menino, pôde José voltar à Pátria.

Num rasgo de argumentação, chega a considerar pegadores de Deus, David, Santo António. Mas contrariamente ao que acontece no mundo, Deus «só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele».

E a argumentação prossegue. Que o exemplo da famosa árvore que representava Nabucodonosor lhes sirva de modelo! «Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles». O homem, afinal, paga também pelo pecado de Adão, como que o tubarão, de que a humanidade é pegadora.

Outra classe de homens vai criticar, agora, nos voadores - a dos ambiciosos, que se deixam arrastar pela presunção e pelo capricho. A eles se refere, quando diz: «Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem». A argumentação é cheia de graciosa ironia - «A natureza deu-te a água, tu não quizeste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo», diz ele, em apóstofe expressiva. E conclui com esta sugestiva metáfora: «Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas».

O símile da ambição dos homens é apresentado em Simão Mago que, querendo fazer-se passar pelo verdadeiro filho de Deus, ao tentar subir ao Céu, foi precipitado na terra, partindo os pés. Desta forma perdeu as asas e os pés, esse homem ambicioso.

Depois de exaltar, uma vez mais, Santo António, diz aos peixes, sempre para atingir os homens: «voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso Santo pregador ... ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros».

Vai oferecer-nos a última alegoria deste inspirado sermão '- o polvo - símbolo dos hipócritas, dos traidores. «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constan­temente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega que o dito polvo é o maior traidor do mar.»

Neste trecho magnífico, é evidente a propriedade da linguagem, onde todos os elementos se ajustam perfeitamente, a sua tão vasta cultura sacra e profana, o encadeamento lógico das ideias realçado com os recursos do seu talento de orador:


· a adjectivação antitética - «hipocrisia tão santa» - e rica;
· a antítese - «as cores que no camaleão são gala, no polvo são malícia»;
· o paralelismo anafórico, insistente e incisivo, com o característico alargamento das frases à medida que se aproxima do fim, cortando a monotonia e arrebatando - «Se está nos limos, faz-se verde; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra»;
· a subjecção, através da anadiplose - «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe ... »;
· a interrogação retórica - «Fizera mais Judas ?»;
· a comparação por contraste - «Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende ... »;
· a apóstrofe e a exclamação retórica - «vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!».


Ao terminar este sugestivo perfil da traição, comenta, em progressão: «E que neste mesmo elemento (a água sempre clara, diáfana, transparente - como disse) se crie, se conserve e se exercite com dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!»

Do polvo, passa às terras de missão onde, também, «há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições». Santo António volta a ser o modelo apontado, pois, nele verão «o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade».

Tem ainda uma palavra a dizer aos que morrem, «com o alheio atravessado na garganta»; e faz, então, referência aos que se aproveitam dos bens dos naufragantes» que, por isso, «ficam excomungados e malditos», mergulhando novamente na Sagrada Escritura para colher o caso concretizante: o do peixe que morreu por ter engolido uma moeda.

Vai realizar a Peroração com a «última advertência» aos peixes. Estes foram excluídos do sacrifício consagrado a Deus. Era motivo de desconsolação. Mas tinha de ser assim, porque os peixes não poderiam ir vivos ao sacrifício «e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares». E surge a apóstrofe consoladora e crítica: «Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto».

Antes de terminar o sermão com um magnífico hino de louvor, a remeter-nos para os Cânticos de S. Francisco de Assis, retrata-se a ele próprio, como pecador, em oposição aos peixes, para atingir a humanidade, em geral.

In Lilaz Carriço, Literatura Prática, vol. I, Porto Editora, 1982

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